sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Entrevista - Trancarua

O coletivo pequena ameaça entrevista a banda Trancarua - os velhos Anarco-Punx do extremo leste de São Paulo. A banda é Hildebrando (voz); Edson (bateria); Fernando (voz bonita e baixo); Daniel (guitarra) e Fabio (guitarra).

pequena ameaça - Gostaríamos que vocês explicassem o que é o Trancarua.

Hildebrando - A gente acabou pegando esse nome por uma questão ética, musical, cultural em relação ao brasil, a essa mistura de culturas populares... a questão da afrodescendência... A gente achou interessante colocar porque dá também aquela idéia de trancar a rua, fechar a rua e é o que falta as vezes em alguns momentos. Só o PCC conseguiu fazer isso, infelizmente. Mas a gente acabou achando esse nome, discutindo esse nome... eu, o Fabio véio loco e o Edson...

Fabio
- Na verdade, o princípio do nome, a idéia de início foi exatamente esta, de que o nome tivesse uma sonoridade forte, já que o som da banda não é tão forte, pelo menos o nome teria que ser um pouco forte (risos). A idéia inicial foi esta, de um nome que tivesse um significado de protesto, de trancar a rua e essas coisas todas. Lógico que essa ligação com questões africanas, religiosas - a religiosidade africana e cultural - veio na sequência e ia ficar até um pouco difícil se desligar disso por causa do nome - trancar a rua, o exú e tal. Mas a essência do nome é exatamente essa, tanto que é até escrito tudo junto, trancarua. Porque se escrever separado já muda um pouco o contexto que é o exú. Nós todos somos ateus, então não ia ter nem o porquê de colocar um nome que estivesse ligado a alguma religiosidade de qualquer cultura. Mas foi uma certa inerência, tem uma certa inerência essa história de áfrica, de religiosidade cultural... já que essa coisa veio junto, a gente reforça também essa questão de racismo, de respeito a culturas diferentes, mas a essência real do nome é a ligação com barricadas, com protestos e essas histórias todas...
pequena ameaça - Vocês tem alguma demo lançada, algum cd, alguma coisa...

Fabio - A gente tem duas... tem uma que está com a formação original, a melhor de todas... (risos)

Fernando - é, a melhor...

Fabio - então, tem uma demo que a gente gravou em 2005 em Mogi, com um vocalista só que erao Hildebrando, depois entrou o Josino ficando com dois vocais, Leandro no baixo, eu na guitarra e o Edson na bateria. No ano passado, 2008, a
gente gravou outra demo com Daniel no baixo. E agora tem outra formação com duas guitarras, a gente resolveu colocar duas guitarras para suprir a minha deficiência "guitarrística", chamando o Daniel pra tocar guitarra e o Fernado no baixo pra ver se melhorava um pouco. Parece que ficou melhor, eu gostei...

Hildebrando - Os caras (Fernando e Daniel) gostaram, porque é uma oportunidade deles aparecerem : "porra a banda de vocês é foda, vocês são maiores intelectuais, a gente pode andar com vocês?" (risos). A banda tem um físico, um historiador, um artista plástico, e o Fabio é alto de data, o que é mais importante... não precisa entrar numa universidade.

Fabio - Marginal...

Hildebrando - ...é, marginal... seja marginal, seja herói.

pequena ameaça - Tem uma música de vocês chamada "Romão Gomes". Expliquem quem é "Romão Gomes".

Hildebrando - Romão Gomes é um presídio onde fica os individuos que fazem a segurança do Estado. Historicamente quando você tem a formação da força pública em São Paulo você logo de cara já cria um espaço para esses individuos, para eles virem de uma forma mais organizada. Então, Romão Gomes é um presídio onde fica os individuos que matam em nome da Lei, em nome do Estado. E lá eles tem uma facilidde de viver porque é um lugar bem adequado pelo que eu tenho de informação, é um presídio bem adeaquado, eles tem acesso a um monte de coisas, tem telefone, tem internet...

Fabio - É um presidio para policial...

Hildebrando - ... saiu uma reportagem num jornal, que eu não cito aqui, que eles tem uma vida legal, bem organizadinha...

Fabio - Tem alguns que quando vencem a estadia deles lá, não querem voltar pra rua, querem continuar lá. E quando voltam pra rua continuam com a mesma paranóia, com a mesma relação de poder que é a única hora que pode se sentirem superior a alguém, continuam com o mesmo mecanismo, mesmo ciclo vicioso.

Hildebrando - Por que Romão Gomes? Porque não dá pra gente chegar e falar "fodasse a policia". Então, colocamos Romão Gomes e a música fala da violência policial que agente sofreu, que agente sofre ainda. A classe trabalhoradora de um modo geral sofre violência policial. Não há como conciliar a força policial com a liberdade e com aquilo que eles chamam de cidadania.

pequena ameaça - O que significa Punk/Hardcore pra vocês? Essa contracultura ainda representa algum perigo à ordem dominante? Falem um pouco sobre isso!


Hildebrando - A ordem dominante ela permeia tudo hoje até o meio Hardcore. Na verdade, a gente começou a entrar nessa contracultura, que é a contracultura Punk, e a contracultura hoje, essa palavra virou um monte de coisa que tem fora, coisas oficiais que acabaram virando contracultura.

Edson - Contracultura é um vocabulário burguês, e é complicado você começar a usar isso porque se não você está fazendo, misturando o que os caras fazem com o que você faz. Como você está falando do cenário e falar do cenário é complicado, aliás, cenário com fundo político é complicado. Não sei se isso já existiu mas pelo menos pra gente aqui, nós sempre tivemos bandas, fomos militantes... hoje não, nós estamos ficando velhos e a vida vai tomando outros rumos... eu não vejo acontecer com quem está chegando... você conversa com a mulecada por aí eles não não tem referência nenhuma musical a única referência é o que está na mídia... só o que está na mídia mesmo...

Hildebrando - Sem falar a questão também que você vai hoje num som e você não consegue conversar com essa garotada sobre questões pontuais. Tem a letra, tem a postura, tem o visual mas - não que tenha havido antes, a gente não tem essa de olhar pra trás e "na minha época era legal" - há individuos que estão no meio Punk/Hardcore que tem uma ansia por transformação, sempre houve, individuos que estão ali pelo espaço de diversão, de socialização, de aceitação. No meio Punk/Hardcore tem muito maluco que é doidão, você pega o final dos anos 70 em São Paulo, por exemplo, o Punk era marginal, era bandido... você pega "SP Punk", pega "Punk do Subúrbio"... essas gangues que tinha no final dos anos 70 e começo dos anos 80 - e que hoje estão voltando infelizmente - e acaba virando isso. É a mesma coisa você olhar os grupos que estão se "degladiando" nos morros do Rio de Janeiro para tomar o poder. Na verdade está todo mundo na mesma merda mas cada um quer um espaço. E fazer essa alusão com o crime "organizado" é porque você tem hoje de novo essa coisa "a gente é de tal gangue, é isso e aquilo e aquilo" e depois se encontra e fica batendo um no outro e enquando isso o "Sistema" que é o real perigo pra todos está aí, continua intacto. E em vez de você combater a ordem policial, você usa aguardo policial porque vai acabar juridicialmente prejudicado pela agressão a outro punk ou a outro não sei lá o que. E a gente hoje, e o Edson falou essa coisa de ficar velho, não dá pra hoje chegar e falar somos punks. A gente é uma banda que toca um tipo de música que se encaixa no Movimento Punk. Não é "somos punks". Não dá chegar e falar "sou punk" ou "deixo de ser punk". A gente tem uma linha de reflexão que está dentro dessa cultura Punk. É muito importante a coisa que a gente tem, 20 quase 25 anos no meio disso, supriu muita coisa pra mim, para o Edson, para os meninos aqui... para o Fabio. O pessoal amadureceu muita coisa na cabeça, de ter uma perspectiva de fazer uma crítica política, de militar no sindicato e de repente dar algum apoio a algum Movimento Social, porque o Punk trouxe isso pra gente. É por isso que a gente fica meio fudido de ver uma cultura que trouxe pra gente um conhecimento, uma postura política e ver como está hoje. Você vai num evento e o cara vem perguntar se você "baixou tal música" se "aquela banda é mais pesada que essa", que "a gente é mais rápido que você". Eu acho que isso não é a discussão, tocar rápido ou não tocar rápido não vai agredir ninguém.

Edson - Eu queria colocar uma coisa no que eu falei, não que todo o cara que vai tocar guitarra tem que ser revolucionário, não é essa a questão, a questão é a seguinte: o conhecimento político é importante pra você saber o que seria importante e o que não é. O que você ouviu. O que é subversivo e o que não é. Isso é uma questão de você saber essas escolhas...



Hildebrando
- Teve uma época que tinha shows, amizades, todo mundo era aquilo era isto, e a gente participou de uma ocupação em guarulhos do MTST, na época, e esse mesmo pessoal que era todo revolucionário e tal foram "obrigado" a entrar e a sentar num banheiro improvisado com um buraco no chão. Eles se horrorizaram com aquela situação, as menininhas da PUC e da USP "ah, não sei o que na revolução..." de repente viram que tinham que cagar num buraco, ficaram olhando e falaram "ah, não vou entrar aí..." é foda né! Imagina numa situação de transformação radical da sociedade, como é que vai ser? Esse pessoal vai continuar no lugar que está. É muito fácil falar "a revolução e não sei o que", "nossa banda é isso e aquilo", e numa ação política será que a gente vai pro pau mesmo, será que a gente apóia, será que a gente realmente está afim de estar junto? Porque hoje, eu já ouvi de muitos anarquistas - principalmente dos anarquistas que estão no "alto" da PUC - que falam que o povo é traidor. Não é que o povo é traidor, o povo é o povo, nós somos o povo. Não dá para pegar uma teoria política e fazer uma leitura pós-moderna, como eles dizem, e não dar para acreditar numa transformação. Transformação significa que você vai desalojar do seu lugar, que vai beber água suja, vai ter que cagar no chão, vai ter que sentir fedor... eu não sei também se esta transformação radical virá, mas a gente tem essa perspectiva e está aí pra isso. Tem que estar pronto para se um dia tiver vamos ter que se incerir e não tem como fugir. Vamos ter que largar nossos valores, as nossas guitarras vão ser roubadas e quebradas, os nossos amplificadores alguém vai dar uma voadora nele, vão por fogo e aí acabou o Rock... acabou o Punk... acabou a "revolta"... Aí sim, é a hora da verdadeira revolta... por enquanto...

Fabio - Até porque, numa transformação social, não vamos ter pra onde correr... se não for correr pra cima... agora, o pessoal que está em outros degraus, vão para o exterior, vão pra fora, vão ser exilados... e a gente não vai ter para onde correr...

Hildebrando - Não que a gente esteja falando "nossa os caras são maior esquema ultra radical, o clube do CRUJ"(risos), não é isso, nós temos essa perspectiva de uma transformação social, se ela vier, temos que estar preparados, talvez a gente morra e não veja isso, mas a gente anseia, desde que comecei a tomar os meus conhecimentos sobre o que é a sociedade, graças ao Punk. Por isso digo que o Punk é importante, e percebi que existe uma disparidade muito grande, vamos dizer aí, entre classes, que isso é poibido usar hoje e na pós modernidade não se fala em luta de classes. Nem os anarquista falam mais em luta de classes hoje também, falam em liberdade, em todo mundo andar pelado, um dormir com o outro... é legal mas e aí? É todo mundo dormir pelado e não fazer nada?

pequena ameaça - Todo punk naturalmente é anarquista mas nem todo anarquista é punk. Vocês se consideram anarquistas?! O que é anarquia pra vocês?!


Hildebrando
- Olha, hoje rotular da forma que é rotulada é complicado. Eu sou libertário. Eu assumo essa postura porque é o que me educou pra sociedade. Por exemplo, hoje eu trabalho com jovens de situação de risco, trabalho em escola pública e enquanto professor mantenho essa postura libertária de não oprimir, de tentar trabalhar com esses meninos de uma forma mais horizontalizada. Porque a educação é também uma via de entrar na escola. É legal você ter uma posição libertária e entrar num meio autoritario. O punk e o anarquismo deram pra gente essa posibilidade de entrar no meio autoritario que é a escola e dizer aquilo que a gente pensa... de tentar fazer uma transformação, pelo menos a minha. E a educação eu vejo como militância política.

Fabio - Você disse que todo punk é naturalmente anarquista? Eu acho que não. Eu tenho certeza que não. São coisas distintas mas que andam muito bem quando estão juntas. A mesma coisa é o caso do Hardcore que necessariamente não é uma música política mas é uma coisa que caminha muito bem junto. Eu particularmente sou anarquista. Eu acho que o anarquismo hoje não dá pra ser vivido como no século passado (séc. XX) e fim do século antepassado (séc. XIX). Não dá pra ter o mesmo romantismo. Não dá pra ser francês ou italiano como no começo do século passado aqui no brasil. Mas é uma coisa que eu consigo colocar no meu dia-a-dia com muitas pessoas com quem convivo, com quem eu vivo. É um meio onde consigo até me livrar de certas paranóias que veem em consequência do sistema capitalista (risos). Então, eu sou anarquista, lógico que não romântico. Não dá pra ser romântico. A gente tem que colocar o pé no chão e assumir que o anarquismo hoje não dá pra ser com em tempos atrás.

pequena ameaça - Qual a influência de vocês? O que vocês andam ouvindo, lendo, assistindo, vivendo, fazendo...?

Fabio - Eu ouço o bom e velho rock´n roll. Música barulhenta. De uns anos pra cá comecei a ouvir e conhecer o Jazz que acho que é umas das músicas mais revolucionárias estéticamente falando. O Jazz é mais anti-música do que o próprio Hardcore, até mais podre. É só dá uma olhada na história do Jazz. O musical e o social tem mutio haver com a história do Punk, como movimento político e musical. É uma música extremamente doida.

Hildebrando - Eu ouço coisas modernas, pós-rock, eu amo Joy Division - o cara mais poeta que existiu na música (o vocalista). Antes dele teve outros mais importantes...

Fabio - ... O nosso amigo Hildebrando é esquizofrênico por isso que ele se identifica...! (risos)

Hildebrando - ...ouço o velho e bom Crust, Hardcore dos anos 80 e algumas coisa novas também... músicas alternativas, Jazz também, Portishead, Ska, ouço muito Rap também. Acho que o Rap tem uma puta força. Hoje está meio apagadinho mas ele é uma música muito foda. Dependendo do trabalho ele é uma música extremamente transformadora, hoje nem tanto mas já foi uma música que teve muito mais aceitação da juventude da periferia. Porque o Rock é outra coisa. O Rock é de classe média, se você tocar Rock na quebrada, o Hardcore, a mulecada vai achar o maior barato: "porra os caras são maior louco, gritam pra caramba, pulam pra caramba" mas o que tem mais haver com a realidade da periferia é o Rap. No começo a gente tocava muito com o pessoal do Rap. Eu acredito muito mais neles do que essa mulecada de tatuagens de mil reais...(risos)
Fabio - super colorida...(risos)

Edson - É uma rapaziada que vive o drama mesmo, estão lá embaixo em contato com toda a merda...

Hildebrando - Toma tapa da polícia toda hora, mora na quebrada mesmo. Você tem os grupos da zona sul, por exemplo, no capão redondo tem uns muleques organizados pra caramba. Põem a mão na merda mesmo, e falam "se é pra mudar, então vamos sujar a mão na merda". O Hardcore é foda, no começo ele era "laranja mecânica" total e depois virou o que virou hoje.

Fabio - Quando a classe média absorveu o Hardcore e, teve uma pergunta que você fez antes que era se o Harcore poderia fazer alguma transformação na sociedade, há um tempo atrás ele incomodou bastante hoje já não incomoda mais, já foi absorvido e no caso do Rap está sendo a mesma coisa. E a classe média e a mais alta já estão começando a absorvê-lo, neutralizando-o e pasteurizando-o. Mais uma transformação social que a juventude desenvolveu que está começando a ser neutralizada. Mas o que incomoda um pouco ainda o sistema é o Rap.

pequena ameaça - Fora o Trancarua vocês tem algum projeto?

Fabio - Eu tenho um projeto onírico e solitário de fazer um som com elementos de Jazz e Funk dos anos 70, mas eu chamo um pra fazer comigo, chamo outro e ninguém quer tocar, inclusive você eu já chamei também e me deu um perdido. Então eu continuo no meu mundo onírico e solitário.

Fernando - Eu sou multi-instrumentista, sou prostituto da cena, toco baixo, ponho meu colete pra tocar e sou bonito...(risos).

Fabio - Esses dois aí (se referindo ao Fernado e Daniel) tocam no Discrepante. Aquela banda fudida formada por três irmãos que, inclusive é uma das minhas influências. Depois que eu conheci eu "paguei um pau, essa banda é foda". Mas comecei a conviver com eles e descobri que são um bando de caga-grosso (risos).


pequena ameaça - Pra acabar, falem alguma coisa... mandem alguém tomar no cu, mandem beijo pra alguém...

Hildebrando - Valeu você por desalojar lá do seu lugar pra vir aqui. É a primeira vez que a gente faz uma entrevista (risos). Se tivesse mais oportunidades de vincular informação pra essa mulecada e colocar no mundo as idéias que pensamos de uma forma alternativa que é essa forma que talvez você busque. Hoje você não tem mais aqueles zines de papel como antigamente tinha pra caramba - tem um pouco ainda, o Fabio faz, eu faço, você também faz. E agradecer a oportunidade. Longa vida a gente, quando eu falo a gente, falo dessa cena que é real, eu não sei se é real também. Mas que continue viva e que a gente envelheça com dignidade. Valeu mesmo. Arruma um som pra gente e já era. Fica quieto! (risos).

http://www.myspace.com/trancarua
www.myspace.com/trancaruawww.myspace.com/trancarua
www.myspace.com/trancarua www.myspace.com/trancarua


Obs.:
esta entrevista foi realizada em meados de 2009 no Distúdio, itaim paulista e seu vídeo encontra-se disponível e dividido em cinco partes sem cortes no youtube com o nome de ‘‘Trancarua - entrevista’’ ou "pequena ameaça" Links:

http://www.youtube.com/watch?v=bt1R3eu7UjQ // http://www.youtube.com/watch?v=nVBxz3LJIPA // http://www.youtube.com/watch?v=HxJoaCPFs8g // http://www.youtube.com/watch?v=_uHJ9N0FY2U // http://www.youtube.com/watch?v=tzDxr0NAfdQ // .

E agradecer o chatão do Cainã por emprestar a câmera da sua mãe para realizar esta conversa.