terça-feira, 8 de setembro de 2009

Sociedade Morta-viva

O que significa ser “humano”, ou o que significa “ser humano”? Esta questão tem se tornado cada vez mais importante ao observamos um mundo moderno que parece “hostil ao homem” ou “desumano”. Existe uma grande indisposição de refletir sobre esta questão, pois a definição do conceito de humano recai sobre a questão do sentido da vida humana, o que é uma questão “metafísica demais” para o homem moderno. Este se acostuma a encontrar seu sentido na falta de sentido, e em nada mais. O sentido humano inclui a pergunta pela “função” humana, não no sentido funcionalista, mas no sentido da pergunta milenar “porque estamos aqui”, ou “qual o nosso papel na existência”?

Ao tentar definir nossa humanidade, os filósofos recorreram a uma série de aspectos do homem, desde a racionalidade até sua composição genética. Mas a pergunta pelo papel do homem não envolve apenas uma característica interna do homem. Envolve a etologia humana, ou seja, o comportamento humano, incluindo aí a cultura, as crenças e a ética. Hoje em dia, o significado da pergunta “o que você faz?” ou “qual a sua função?” é entendida como “qual é seu trabalho/emprego”. A pergunta sobre o que fazemos relaciona-se com a pergunta sobre qual o nosso papel, o que acaba determinando nossa auto-imagem, quer dizer, nosso conceito sobre quem somos. A pergunta “quem você pensa que é?” remete ao status social, o que por sua vez remete a uma profissão. Não raro, o primeiro dado biográfico que procuramos sobre as pessoas, logo depois do nome, é a profissão, a ocupação, o cargo, o lugar que esta pessoa ocupa não apenas na sociedade, mas na sociedade do trabalho. As roupas que vestimos e o modo como nos portamos reflete nossa posição nessa sociedade.

Num mundo que provoca tanto o trauma quanto o vício pelo trabalho, os eventos que ocorrem no local de trabalho ou os pensamentos decorrentes da atividade do trabalho têm sido os temas mais comuns nas conversas informais, mesmo nas conversas entre familiares, entre casais, entre amigos ou entre estranhos. O trabalho, e tudo que ele suscita, tem invadido gradualmente todo nosso tempo, nossa vida, nossa mente e todas as nossas disposições de ação. O comportamento no trabalho tem se tornado mais “condicionante” para o indivíduo do que sua convivência em qualquer outro espaço social. De fato, a tendência “alienante” do trabalho repetitivo, comum na era industrial, foi substituída por uma etologia que leva “a vida para o trabalho” e “o trabalho para vida”, em todos os seus aspectos. Até mesmo o aspecto lúdico, antes dissociado do trabalho, agora pode ser confundido com este, quando se torna mais comum ouvir a frase: “Isto não é brincadeira, é meu trabalho, mas eu me divirto muito com ele”. Assim, a etologia humana está cada vez mais, centrada na sociedade do trabalho, confundindo-se com a etologia do trabalho. Não apenas do trabalho humano, mas do trabalho “civilizado”, isto é, com vias para o progresso de uma sociedade tecnocrática, que muda numa velocidade espantosa, a ponto de não conseguirmos mais dar qualquer adjetivo a ela, pois os adjetivos se tornam rapidamente obsoletos. A mudança de forma desta sociedade está se acelerando a ponto de não podermos mais dar um diagnóstico preciso sobre sua situação.

O “ethos” exigido no local de trabalho, assimilado como “lição de vida” pelos “discursos motivacionais”, tem se tornado um “estilo de vida”, algo que se torna base para o comportamento em todos os outros aspectos da vida, como o relacionamento íntimo, o consumo, a postura ética, o posicionamento político, até mesmo a crença religiosa. A carreira enquanto estilo de vida se torna um fetiche: o indivíduo procura consumir qualquer coisa que esteja relacionado ao seu trabalho, como objetos de decoração que simbolizam sua formação. O olhar cotidiano se torna um “olhar médico”, um “olhar jurídico”, um “olhar filosófico”, e assim por diante. Tudo gira em torno da profissão. O indivíduo tem centralizado vida no trabalho mais do que em qualquer outra de suas capacidades humanas. Em outras palavras, a função artificial, criada para suprir uma sociedade de acúmulo, está substituindo nossa “função humana”, aquela responsabilidade que tínhamos no passado. Nestes termos, a sociedade do trabalho criou uma nova função para o homem, destituindo-o dos deveres que ele tinha antes e substituindo uma ética baseada na relação do homem com o sagrado por uma ética baseada na produção e no consumo.

Esta “função humana original” se assemelha à etologia dos animais não domesticados (ou selvagens), pois eles não vivem no acúmulo de poder, vivem na dádiva da vida. Esta vida “na graça” foi deixada de lado como algo aprisionador, pobre e primitivo. A questão que se coloca é então uma oposição entre trabalho, que é nossa função social nesta estrutura mercadológica, e nossa função humana, que é nossa função no e para o meio em que o humano estava originalmente inserido, no e para o qual ele surgiu. As duas funções não se confundem quando analisamos a humanidade no seu sentido mais amplo. Percebemos a substituição gradativa da função humana pela função do trabalho.

É nesse contexto que se insere a metáfora de uma sociedade de mortos-vivos, que representam seres com aparência superficial de estarem vivos e realizarem funções, porém sem qualquer conteúdo ou sentido para essas funções. Não apenas “somos para morte”, mas nossa função humana perdeu seu valor intrínseco, reduzindo-se a uma função que objetiva apenas a reprodução de comportamentos voltados ao trabalho. Mesmo o que não é chamado de trabalho, como o entretenimento e a arte, existem em função do trabalho, e seguem também a estrutura do trabalho, uma vez que esta assimila todas as atividades humanas e as classifica de acordo com um cálculo de eficiência. Perguntamos-nos o que “compensa” mais, ir ao teatro ou ao cinema, em termos de uma “eficiência de diversão”. Atividades reflexivas, que não nos distraiam o suficiente ou não ocupem ao máximo nossa atenção, são consideradas pouco divertidas. Ver um filme, por exemplo, é preferível a ler um livro, porque as múltiplas imagens fluindo constantemente fixam nossa atenção na multiplicidade de informações, deixando pouco espaço para refletir sobre a mensagem.

Um morto-vivo caracteriza-se por aquele ser que está destituído de sua função enquanto ser vivo, mas que ainda mantém uma função com fim em si mesma, caracterizada por um movimento programado, típico de um autômato ou de um objeto animado por mecanismos invisíveis. Seu “princípio de ação” é controlado por forças estranhas à vida, como um desejo insaciável de destruir/consumir vida pulsante, o que significa consumir aquilo do qual tem carência. Na literatura, mortos-vivos podem ser inteligentes, sedutores e refinados como os vampiros. Podem ter uma aparência atraente, ainda que por meio de um encantamento. Podem mudar de forma, e são imunes a ferimentos. Os mortos-vivos estão à caça dos vivos. Também apresentam a característica de infectar o outro com sua doença ou maldição, espalhando-a como um vírus. Os mortos-vivos andam à noite porque se escondem dos vivos. A vulnerabilidade ao espelho revela que eles também se escondem de si mesmos. São insensíveis e frios.

A perda das funções humanas leva a uma busca constante por algo que parece impossível de ser alcançado, pela reprodução de uma rotina sem sentido e sem finalidade. Isto é o que acomete todos os membros de uma sociedade morta-viva, gerando medo, raiva, desespero. A morte-vida, diferente da morte, se espalha dominando as mentes e os corpos, num movimento de expansão de influência e poder por via do engano e da violência. A morte fecha o ciclo da vida, mas a morte-vida impede o fechamento do ciclo da vida, criando um ciclo infindável dentro do ciclo vital, como uma referência circular ou um “loop infinito”. Ela nos desliga de nosso propósito como seres humanos e nos leva para uma espiral descendente de acúmulo e expansão de poder, seja pela brutalidade ou pela astúcia.

Não é por coincidência que alguns autores relacionaram os morto-vivos à maldição de Caim, o primeiro agricultor, primeiro assassino e também fundador da primeira cidade. Caim foi condenado a vagar pela terra sem rumo definido e recebeu uma marca que o impede de ser morto, porém todo seu trabalho resulta em cinzas. Ele é por definição o homem destituído de seu papel humano, condenado a caminhar para o vazio, numa existência sem sentido intrínseco.

Caim, que arou seu campo com o sangue de seu irmão, é o primeiro a acumular. Em hebraico, Caim significa “homem de posses”. Ele, que foi herdeiro da condenação ao trabalho pelo pecado da cobiça, agora também se torna fundador de uma nova maldição: a inveja que leva à destruição da vida em função do trabalho.

Nós elegemos o trabalho como fonte não apenas de sustento, mas de sentido existencial. Mesmo quando tentamos fugir do trabalho em atividades artísticas, estas só podem prover sustento porque outra pessoa trabalha para adquiri-las. A arte também pode ser mais procurada quanto menor o sentido de nossas existências, uma vez que ela provém um momento de sentido aparente. Mas a função humana não pode ser resgatada pela atividade artística. O sentido existencial não pode ser substituído pelo sentido estético.

Os membros da sociedade morta-viva são como insetos batendo numa lâmpada que eles pensam ser o sol. Contínua, furiosa e entorpecidamente, concentrando todo seu ser nesse fluxo aparentemente vital, porém originado do auto-engano. Caminhando na mentira que conduz à escuridão da morte do sentido.

Todos os aspectos do trabalho moderno, incluindo a programação de comportamentos pelo cálculo de produtividade, se tornam aspectos da vida moderna. Estes conduzem continuamente o indivíduo ao automatismo e ao artificialismo. E ao mesmo tempo ao prazer, à tentativa de aproveitar ao máximo as experiências agradáveis, ao consumo insaciável de “vida”. Mas a vida transformada em produto também se torna parte de um processo “sem sentido” quando o consumo acaba. Ou seja, este processo é a transformação de tudo que é vida em morte-vida. Luz em escuridão. E quando as luzes se apagam, é cada um por si, não há mais referência comum. Somos nosso único ponto de referência num universo restrito ao eu, onde o outro é uma ameaça, e não faz sentido falar sobre de onde viemos e para onde vamos.


Janos Biro
Goiânia, 01/09/09



Texto extraído do blog Uma Nova Cultura:
http://www.umanovacultura.blogspot.com/

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